sábado, 17 de outubro de 2020

Sólido de mim

 Sobre aprender a ser só, Gil.

Vivo e enquanto penso, vivo. Enquanto penso, vivo. E no enquanto desses pensamentos (ou no enquanto dessa vida), vai despertando uma ideiazinha dizendo: é preciso aprender a viver só. Não necessariamente solidão. Mas o aprender a lidar com o sólido de si. O encarar. O respeitar. E o mais lindo, encontrar felicidade na minha solidez. Vê-la parte se dissolvendo, parte se recriando e o sólido permanecendo, entre mudanças, permanecendo. 

Nessas manhãs o sólido me vêm. Me vêm cheio de palavras, cheio de sorrisos, em silêncio, que abraça. Nesse tempo que não há tantos abraços, ele me vêm no só, me abraça. Não quer nada em troca. Quer só dizer, só sorrir e só deixar por aqui, em algum espaço do estar só, em algum espaço da solidez, o seu abraço. A sua presença, que é a minha. 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um canto de passarinho

 De relembrar um querer.

De perceber que esse querer é um desejo. 

De saber que esse desejo é um sonho. 

Esquecidinho. 

Mas relembrado. 

Nesta noite

que precisa sim

ser relembrada.


Que acordem os sonhos

ainda que eu durma

que me acordem

me despertem

sempre e mais.


Do livro.

Da viagem ao mundo.

Da defesa de quem precisa.

Da casa simples, da família simples.

Do amor de todo dia. 

Que eu sempre aja 

com muito amor todo dia, todo o dia.


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Texto ao pai

E quem diria que eu sentiria saudade até de uma risada. Aquela estrondosa, aquela que preenche todo o ambiente quando ele ri. Que saudade dessa risada de um tio. Ele tremia toda a barriga pra soltar essa risada e aí a gente ria junto também. E assim ele era uma das pessoas que mais alegravam as outras. Só com essa simplicidade do riso. E aí chega minha vó. Que saudade das tardes e dos bolinhos quentinhos. Lembra de quando a gente sentava no colo dela? Quatro crianças num colo só. Ela devia morrer de cãibra, mas quase nunca reclamava. E a alegria que ela tinha de cozinhar e ver todos ali na cozinha, conversando, sorrindo, juntos. Aquela criançada correndo, uma gritaria só. Imagina isso em uma de nossas casas agora. 

E hoje todo mundo separado, cada um no seu cantinho. Tantos descaminhos, tantas preocupações. E as dores? Dessas, às vezes parece que só tem elas. Mas aí a gente tenta lembrar de outras também, não deixar que ela inunde. Até porque é muito sofrimento nessa vida, nesse Brasil. Cada história estranha, depois a gente se pergunta, mas como foi que aconteceu tudo isso. E compreender um pouco delas faz da gente um pouco maior, criar essa percepção, esse entendimento das coisas. Vontade de escrever uma história de cada um, porque todos são vários livros. 

E aí vem meu tio. Aquela barriguinha cheia de presença, gosto por conversar, um carinho que antes eu não percebia. E hoje como me arrependo de não perceber. Fui tão contra a tanto, minha rebeldia me cegou. Às vezes lutava pelo o que achava certo, na verdade, fez tudo mudar e encontrar um descaminho. Um desavanço que não consigo prever o fim. Mas quero que acabe. Agora nem sei como, e saber que fui parte dele pra acontecer. Ele também foi. Um conjunto feito por todo mundo junto. Mas eu não devia ter feito parte, a rebeldia realmente me cegou. Minha ira adolescente. Queria que tivessem me ouvido mesmo, me dado menos razão. "Isso é coisa de adolescente", aquela frase detestável, mas que já seria um pouco de solução. Ao mesmo tempo, tudo isso me faz perceber o quanto eram sensíveis, por considerar a minha palavra. Pena que não estava certa. Fazia muito sentido, eu sei. Mas não era um dos planos da vida. E é ela que sabe de todas as coisas, Ele sabe. Independente de fazer sentido ou não.

Hoje muitos sofrem nesses cantos, cada um por si, lutando contra a própria solidão. Engolir seco. Respirar fundo. Pensar que vai melhorar, no que vai melhorar. Seguir, tentar, continuar com o que está agora. Ao mesmo tempo um grande alerta. De hoje: de não aceitar o que nos incomoda, não deixar ficar. Mas perceber o quanto estamos sendo felizes. Sempre. Às vezes o incômodo é pouco, a felicidade é maior. E invertemos tudo. Tudo embaralhado. E isso me guiou, cega. 

Agora escrevo daqui porque nem conversar com você agora eu posso. Um dia isso iria acontecer? Talvez, mas provavelmente não seria desse jeito. Se não acontecesse? Com certeza teríamos outros desafios. Mas me pergunto o que seria menos dolorido. Penso só em Riobaldo, certeiro como seu tiro, "viver é muito perigoso". 


Que saudade de vocês. 
Espero que as palavras cheguem até aí.
Espero que um dia eu escreva um livro sobre algum de vocês. 
Vai chegar o dia em que vamos nos abraçar. Espero.
E esse dia de hoje é só mais um dia parte do meu aprendizado.
Que venha o clarear do pensamento.
Que venha a luz que nos faltava.
E aparte toda essa dor do parto.
[até essa ideia era tua, tio]


Esse texto hoje é pra você. Você compreenderia. Mas nunca irei te mostrar porque causaria muita dor. Já basta a que você sente. Hoje é só um dia, e vai passar. E à você só me restam palavras doces e tranquilas. O Deus e a vida hão de guiar a tudo sempre. Um dia lerei esse texto e serei mais aliviada. Quem sabe.



[tio que na verdade é pai]